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Em Tempos de PandemiaEntrevista

Luís Aleluia: fazer teatro em tempos de pandemia

“Os primeiros a sair de cena, e os últimos a entrar”

Catarina Silva e Vinícius Otaviano

Luís Aleluia iniciou a sua carreira de actor em grupos amadores, até a profissionalização na Companhia de Teatro de Animação de Setúbal.

Estuda Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é colaborador da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e membro efectivo da Direcção da Casa do Artista, pelos próximos 3 mandatos. É autor, encenador e produtor de espectáculos, tendo criado junto com Carlos Alfaiate a empresa “Cartaz – Produção de Espectáculos”, que desde 1992 tem desenvolvido um importante trabalho no âmbito da descentralização.

É reconhecido por trabalhos como O Processo dos Távoras, Bem-Vindos a Beirais, O Conde D’Abranhos, Alves dos Reis, Praça da Alegria, Portugal no Coração, Os Malucos do Riso, Comédias de Ouro ou Filha do Mar.

E para o eterno menino Tonecas, numa pandemia o ator é uma figura essencial, uma vez que está em permanente comunicação com os demais, enquanto um produtor de espetáculos é uma figura aniquilada, impedida de realizar as atividades inerentes à sua profissão.

“O ator vive muito na solidão e ser ator num contexto de pandemia, de isolamento, já está habituado a esta introspeção. Não estou aqui a me referir ao ator num palco, seja ele profissional ou amador, pois todos nós somos, de certo modo, atores nas nossas próprias vidas. Já no outro aspecto, da produção, todas as atividades operacionais envolvidas na produção de um espetáculo, como marcação de salas e venda de bilhetes: tudo isso deixou de existir; não pode ser feito por takeaway.”

cartaz saídos da casca

Antes da pandemia, Luís Aleluia estava com o espetáculo “Saídos da Casca” em cartaz, com bom ritmo de agenda e presença confirmada em festivais de teatro. Ele comenta que financeiramente os cancelamentos provocados pela pandemia trouxeram perdas consideráveis à produtora, além do provocar grande consternação e tristeza aos envolvidos.

“Desde o primeiro confinamento até o dia de hoje, as datas marcadas foram por diversas vezes reagendadas e, entretanto, ainda não voltamos aos palcos.”

Com a chegada da pandemia, houve uma corrida para trazer conteúdos culturais para o online. Questionado se houve na Cartaz alguma ação do género, Luís Aleluia responde que o formato adotado para realizar os espetáculos é o da digressão e, portanto, com os espetáculos itinerantes é mais dificultoso ter um acervo audiovisual das produções. Ressalta, entretanto, que é algo a se pensar para futuras produções.

“Teatros como o Politeama e o Teatro Nacional de São João, por serem fixos, possuem esta capacidade [de ter um acervo audiovisual]. Já com a dinâmica da Cartaz, com espetáculos itinerantes, acaba por não ser possível gravar com a devida qualidade nos auditórios onde atuamos.”

Além dos espetáculos, a produtora Cartaz tem outros produtos, do género oficinas, workshops, formações e etc.? Se sim, foram adaptados para a nova realidade? Não temos, pois somos uma companhia de digressão. Estes tipos de produtos acabam por ser mais disponibilizados por companhias que possuem um teatro fixo. Vale ressaltar que há escolas, tanto no Norte como na região de Lisboa, com excelente capacidade e trabalho magnífico de formação, não só dos elementos individuais (sejam eles profissionais ou amadores) que compõem um grupo, mas também da criação de plateias, ou seja, do público teatral nos núcleos onde se inserem. Por isso há que se reconhecer este excelente trabalho realizado por estes núcleos teatrais, por vezes à custa de despesas pessoais dos seus integrantes.

Quando perguntado sobre a sensação que teve quando houve o primeiro desconfinamento, Luís Aleluia responde que sobretudo era uma sensação de impotência, dada a complicada gestão da agenda em conjunto com a disponibilidade das salas de espetáculos e a crescente dificuldade no planeamento das atividades da companhia.

“Já lá vai um ano que não trabalhamos em teatro e que não sabemos quando iremos trabalhar. Em virtude da dinâmica de como são exibidos os espetáculos em digressão, e da quantidade de espetáculos que ficaram parados, irá tomar um certo tempo para repor a regularidade em que estaremos em cartaz.”

“Se fosse possível o teatro sobreviver desta forma digital, teríamos desde já o encerramento de teatros físicos (…) Mas o que a pandemia põe aqui em causa, o apresentar presencialmente perante uma plateia, é o que faz o teatro em sua essência.”

Teatro online: sim ou não? Não.
O teatro é uma forma de encontro humano que só se realiza de uma maneira. Há séculos que é consumido da mesma maneira e requer sempre a presença mútua do ator e de,
pelo menos, um espectador, caso contrário não existe teatro. Tem que haver a comunicação entre o ator e o espetador. No teatro online, tal como nas outras plataformas como televisão e cinema, onde as linguagens são completamente diferentes, há um hiato de tempo entre o ator e o espectador, que não pode existir no espaço teatral.

Ao entrarmos no tópico da adaptação dos profissionais de teatro ao formato digital, Luís Aleluia reassegura o comentário anterior sobre a essência do teatro (a presença mútua do ator e espetador) e que então o que vemos no digital trata-se de outras modalidades de encenação, mas que não é teatro per se. Para o entrevistado, por parte do público não há ainda uma grande adesão ao consumo de espetáculos teatrais em formato digital.

“No fundo o objetivo do teatro é passar ao outro uma informação. Os ensaios e a forma de lá chegar pode ser feita mesmo por telefone, mas não é a mesma coisa, porque no teatro existem os tempos, que deixam de ser levados em conta quando um espetáculo é adaptado para uma plataforma diferente. A comunicação imediata no espaço teatral deixa de existir, para não falar das dificuldades tecnológicas que também existem. O teatro tem que estar em permanente ação para que o público não desvie sua atenção.”

Esta necessidade de contacto e atenção do público leva a considerar que, de uma forma geral, os atores, estão bastante fragilizados relativamente à sua saúde mental. Por serem pessoas mais sensíveis, que precisam de relações de afeto forte, não só pelo contacto físico, mas a nível da alma. Esta relação, que vão buscar ao seu trabalho, de uma forma quase dependente, torna-se muito dolorosa quando deixa de existir.

“A saúde mental do artista está em situação de socorro e de necessidade de apoio psicológico. Não pode haver saúde mental se o lado emocional não estiver forte, pujante e sobretudo com capacidade e audácia de enfrentar o resto do mundo. É como se estivéssemos cheios de sede, a morrer de sede no meio do deserto e precisamos urgentemente de um oásis que é o desconfinamento total. Mesmo após o confinamento ainda levaremos muito tempo para tratar este trauma.”

Quanto ao ponto de vista do público, que agora vê espetáculos online, Luís pensa que não existe uma adesão forte:

“A comunicação imediata no espaço teatral deixa de existir, para não falar das dificuldades tecnológicas que também existem.”

Quedas de conexão interferem com o ritmo do espetáculo, o que prejudica a atenção do público que necessita da permanente ação para não perder a relação.

“Os profissionais de teatro buscam essas alternativas para manterem-se vivos e não perderem a relação com seus públicos.”

O Luís já participou nalgum espetáculo online enquanto público? Se sim, qual? Como avalia a experiência? Já. Há artistas, como o Luís de Matos, que já estão a inserir o elemento digital nos seus espetáculos, de maneira a realizar uma interação entre a audiência física e a online. Vi também peças transmitidas, por exemplo do Filipe La Feria, pela plataforma Facebook. No entanto, assistir a esses espetáculos online é o mesmo que colocar um CD ou um DVD e assistir na minha casa. Perde-se a emoção de estar no local teatral – eu posso parar a qualquer momento para ir beber um chá – mas perde-se sobretudo a emoção de estar num mesmo espaço com outras pessoas partilhando as sensações, as gargalhadas, as salvas de palmas. Tudo isso não existe em casa.

Neste novo contexto onde a realidade virtual é cada vez mais presente, para o Luís Aleluia os momentos marcantes são as entrevistas ou o formato Em Direto nas redes sociais, uma vez que agora passam a atingir mais públicos e novas esferas do que anteriormente.

Há um aumento da acessibilidade, ou seja, mais pessoas agora podem consumir esses conteúdos teatrais que de outra maneira não o fariam? É verdade. Apesar da qualidade não ser a mesma, toda a divulgação online fornece maior facilidade para públicos que não tenham visto ou desejem rever determinado espetáculo e agora terão esta oportunidade, até mesmo pela questão de deslocação geográfica. Aumenta exponencialmente a divulgação das peças, atores e companhias.

No contexto pandémico, muitos dos conteúdos a que acedemos no nosso quotidiano, são de difícil interpretação e por vezes requerem uma nova releitura.

 Com a necessidade, aumentada pela pandemia de Covid-19, de uma boa transmissão de conteúdos científicos ao público leigo, comentou-se o papel do ator nesta divulgação, uma vez que são veículos privilegiados para a comunicação. Isto, desde que o texto criado fosse adaptado de modo a não ser demasiadamente técnico, tratando-o de maneira lúdica. Dando como exemplo o disco da Tabuada do personagem Tonecas, conclui-se que o teatro pode ser o veiculo de transporte de informação para qualquer tipo de plateia, abordando até a pandemia num sentido de experiência humana.

“O que é mais importante nisto tudo é a maneira como essa comunicação será feita, de maneira a garantir que a mensagem encontre o seu recetor perfeito, e que a audiência esteja em sintonia com o objeto da comunicação.”

A importância na qualidade desta transmissão prende-se com o facto de a perceção de informação científica, por parte daqueles sem esta área de formação académica, ser crucial para compreensão da calamidade que vivemos nos dias de hoje. Na vivência atual das artes performativas, em que os atores não entram no ramo apenas porque “têm jeito”, mas com uma formação técnica cada vez maior, cria-se uma classe profundamente profissional com o entendimento de saúde equiparável a alguém com formação em engenharia. No entanto, esta classe apresenta a vantagem de encontrar o contexto pandémico cada vez mais inserido na sua arte, por exemplo no cinema americano.

“Quanto mais próximo estiver o ator a transmitir essa verdade, mais a sociedade aceita essa história.”

 Há um possível papel para os artistas como contribuição na divulgação de ciência? Sim, e é justamente o que fazem áreas como Publicidade e Marketing. Quando há um lançamento de um produto, elas recorrem ao teatro para comunicar sua mensagem aos públicos-alvo. O mesmo pode ser feito em relação à divulgação de ciência. Não basta comunicar o facto em si e esperar uma aceitação deste facto por parte do público: é preciso explicar e recorrer a uma certa teatralidade para que as pessoas o entendam. O que é preciso é pensar ao pormenor como será passada a mensagem. Se um cientista conseguir passar uma mensagem para um público da forma que melhor a puder comunicar, o público vai gostar daquela mensagem e vai entendê-la.

O amor ao teatro: as diferenças no impacto da pandemia no teatro amador e no teatro profissional, aos olhos de um artista em contacto com os dois meios

O teatro amador vive ou sobrevive? O teatro amador vive.
O teatro profissional é que sobrevive. O primeiro, por ser baseado na paixão particular, pessoal, há de viver sempre, ao contrário do profissional que precisa de verbas, estrutura e agentes para acontecer.

Sendo alguém que está em contacto tanto com o meio profissional, como com o amador, questionamos as diferenças nos dois pontos de vista.

“Eu acho que todos, de repente, profissionais e amadores, ficaram no mesmo barco, tais como outras atividades da indústria de serviços. Sobretudo porque o teatro sobrevive de uma relação de afetos, seja a nível profissional ou amador. Não apenas da necessidade de ser reconhecido, mas também do convívio com os colegas atores; formam-se nas companhias teatrais também uma espécie de famílias. Todos os atores, sejam profissionais ou amadores possuem uma fragilidade de afeto.”

Relativamente aos retornos financeiros, Luís Aleluia compara a devastação financeira que assolou o setor, a uma praga de gafanhotos que destrói toda uma cultivação. “Toda uma vida perdida”. Confirma que os apoios existiram, quer do estado, quer de empresas particulares, mas que na realidade os apoios chegam apenas a cerca de 10% daqueles que realmente necessitam. Havendo até artistas que, por conflitos de interesses contratuais com o seu trabalho independente (recibos-verdes) não são sequer elegíveis para os apoios.

“Há um ano que estou parado e só agora é que comecei a ter algum apoio, e tenho colegas que não receberam rigorosamente nada. Eu não sei como é que alguns artistas conseguem sobreviver. Sei que alguns passam mal; alguns não trabalham, abandonaram a profissão.”

Menciona ainda a plataforma “União Audiovisual”, que foi criada para apoiar os artistas, técnicos, trabalhadores de artes performativas, e que “estão a fazer um trabalho extraordinário, mas que todos os dias lhes cresce os pedidos de apoio.” Ressalvando que toda a dificuldade financeira é uma desgraça que a nossa sociedade está a passar, e não apenas o teatro.

“Tenho a certeza de que há crianças a ir para a escola sem comida.”

Para poderem trabalhar em segurança, as produtoras dos canis de televisão, financiaram sempre testes regulares aos artistas. Mas o teatro amador não tem essas empresas, a tal máquina, por trás. O teatro amador, para poder trabalhar em segurança, tem que pagar do seu próprio bolso.

“Isto é o que faz o espírito e a alma do teatro amador. Aliás, o teatro amador, muitas vezes concorre com o profissional, de uma forma até injusta.”

Isto porque no teatro amador os gastos são divididos por todos, num sacrifício individual, que se reflete na bilheteira. O teatro profissional tem que diluir no bilhete todos os custos de produção, e não a diferença de qualidade. Consequentemente, é normal que os valores dos bilhetes para o teatro comecem, com o desconfinamento, a equacionar as despesas tomadas com a segurança na saúde de todos os envolvidos.

Com o desconfinamento, apresentam-se ainda algumas dúvidas sobre o retorno do público aos palcos:

“Eu tenho sérias dúvidas que o teatro volte de imediato, mas é apenas uma questão financeira.”

Relembrando as grandes convulsões sociais, como a segunda guerra mundial, afirma que em todas elas, o teatro, o cabaré e a música nunca deixaram de existir. 

“Há uma necessidade do contacto humano, de partilha de ideias, do estar. E quanto mais intimidado o ser humano fica, maior a tendência é de recorrer ao teatro, recorrer aos bares que, por inerência metem sempre uma animação.”

Estes locais, propícios pela união, e pelo contacto, libertam o ser humano da sensação de medo que o isolamento traz, levando-o a querer frequentar não só teatros e bares, mas cafés e jardins. O que poderá causar perturbação neste desejo serão as dificuldades económicas que a pandemia trouxe.

“Amiudadamente tudo se vai refletir nos preços das coisas, é normal, é cíclico, a economia vai ter que ser reposta, e vai sê-lo ao sacrifício de todos nós.”

Sobre a paixão pelo teatro, Luís refere que não consegue definir o momento em que nasceu:

“Provavelmente vem desta necessidade de ser amado, que é intrínseca em todas as crianças. A necessidade que têm de fazer uma brincadeirinha para os pais e avós, é no fundo para uma questão de aceitação, de uma festinha, de um rebuçado, de um colinho, e isto fica nalgumas algumas pessoas. Todos os homens precisam de ser amados. O homem que não é amado fica perdido, fica frio, é uma pedra. Os atores, aqueles de maior, que precisam muito disso e se entregam com uma força extraordinária, entregam-se por uma necessidade de paixão, de serem amados. Talvez seja daí, essa paixão pelo Teatro.”

Revela ainda que a sua intenção profissional era a advocacia, num ideal juvenil de defesa dos mais fracos e vontade de mudar o mundo.

Por último, o teatro é..? Uma forma de comunicação.
Surgiu para isso, na Grécia, para os poetas comunicarem as suas essências, a alma, a metafísica. Mas o teatro tinha o cuidado de ser puro. Os poetas podiam corromper o espírito humano, mas o teatro podia fazê-lo evoluir. Hoje em dia, através do teatro, temos duas vertentes de comunicação, que são as duas razões pelo qual as pessoas vão ao teatro: Uma comunicação interpessoal: as pessoas vão ao teatro, comunicam uns com os outros, estão presentes fisicamente, conhecem os artistas; há toda uma socialização através desta forma de comunicação. Ir ao teatro é uma festa; há todo um ritual, de como quem vai à missa. A outra é ser veículo de mensagem. O teatro, e o ator através dele é assim veículo de um texto e de uma determinada temática. Mesmo não dizendo nada – a palavra não é essencial no teatro, é a presença e a relação de cumplicidade que existe entre o ator e o espectador – na reflexão que fazemos sobre a temática, já estamos a comunicar e a receber conhecimento. Se não houver uma mensagem a passar no teatro, não há teatro; é só uma coisa, não faz sentido.

Crédito imagens: Instagram @Luis_Aleluia.Oficial e Cartaz Produção de Espetáculos

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