As evidências históricas do século XVI em relação à modorra – termo utilizado na península ibérica para designar a atual Encefalite Letárgica –, nomeadamente as que se referem aos estudos do mestre Amato Lusitano e do médico espanhol Gómez Pereira, convidam-nos, quase que de forma imediata, a revisitarmos a história para desmitificar a comummente designada doença do sono. Ao mesmo tempo, os episódios epidemiológicos desta doença neuropsiquiátrica, várias vezes ocorridos em paralelo com as epidemias do vírus influenza, abrem-nos as portas para uma inevitável reflexão sobre as relações que poderão existir entre a doença da gripe e a Encefalite Letárgica. É esta viagem à história que nos permite perceber se poderá ser relevante, fundamental ou inevitável uma reflexão clínica em torno do pós-covid-19, em particular sobre os efeitos tardios passíveis de afetar o sistema nervoso central.
Sobre a Encefalite Letárgica…
A Encefalite Letárgica, também designada por doença europeia do sono, doença de von Economo, ou em inglês Economo Encephalitis Lethargica, é um tipo de encefalite (inflamação do encéfalo) cuja origem, embora bastante discutida, advém de uma possível reação autoimune exagerada no corpo humano, onde os gânglios de base – conjunto de grupos de neurónios especializados no processamento de informações relacionadas com o movimento –, são afetados. A doença geralmente segue-se a uma infeção aguda causada por agentes virais ou bacterianos e manifesta-se com uma grande variedade de sintomas, sendo os mais comuns as perturbações do sono, os movimentos anormais e involuntários e as perturbações neuropsiquiátricas [4].
O nome von Economo surge na nomenclatura da doença pela forma como o neurologista romeno se antecipou, em 1917, em descrever em detalhe os seus sintomas, tendo sido o primeiro a tornar oficial uma descrição pormenorizada da histologia patológica da Encefalite Letárgica. Constantin von Economo, em colaboração com Schlesinger, relatou, em abril de 1917, à Sociedade de Psiquiatria de Viena, casos clínicos caraterizados pela sonolência e discinesias oculares (movimentos oculares anormais), após irromper no país uma epidemia de índole neuropsiquiátrica [2].
Depois da Áustria, a doença, ainda amplamente desconhecida, começou a expandir-se pela Europa, instalando-se em França e Inglaterra na primavera de 1918, numa altura em que era já visível o período de terror que se aproximava com a Gripe Espanhola. Arnold Netter, médico e biólogo francês, foi um dos nomes que esteve na ribalta pela forma como participou na investigação epidemiológica, tendo comunicado à Academia de Medicina Francesa, a 7 de maio de 1918, a definição precisa dos traços nosológicos da doença que observara a partir de 71 doentes [2].
No decurso da Gripe Pneumónica de 1918-1919, que se espalhou pelo mundo precisamente um ano depois dos primeiros relatos de uma epidemia de cariz neuropsiquiátrico na Europa, assistimos a dois momentos epidemiológicos distintos, cujas relações com a gripe espanhola são apenas especuláveis: um primeiro momento que se inicia em Viena, no inverno de 1916-1917, numa epidemia com caraterísticas muito semelhantes às descrições da Encefalite Letárgica de von Economo, e que se espalha posteriormente pela Europa, atingindo números assombrosos durante a Gripe Espanhola; e um segundo momento que decorre entre 1923 e 1927, onde dezenas de milhares de pessoas foram afetadas a nível mundial por diversas formas de encefalite, atingindo mesmo níveis epidémicos na Europa e nos Estados Unidos [4].
Sono profundo, movimentos oculares anormais, perturbações mentais…
Ainda que não seja o objetivo deste artigo analisar a Encefalite Letárgica partindo de uma abordagem epidemiológica, patológica ou nosológica, revela-se fundamental a inclusão dos sintomas observáveis nos doentes infetados pela doença que aqui procuramos explorar. Sabendo já, pelas referências anteriores, que este tipo de encefalite provoca sonolência crescente, perturbações oculares e movimentos anormais e involuntários, vale a pena recorrermos ao relatório do Dr. Ricardo Jorge (1918) – Nota sobre uma nova infecção epidemica: Encefalite letárgica ou Estupor epidemico [1] – no sentido de compreendermos aprofundadamente os efeitos reais desta doença.
Febre, cefalalgia, mal-estar, fraqueza, e às vezes vómitos. A fraqueza vai até à prostração, ao entorpecimento total – miasthenia profunda, impotência e relaxação muscular; o enfermo fica na cama sem se virar, sem se mexer, imóvel e inerte como corpo morto. Vem ao mesmo tempo a sonolência; no início, por momentos, ainda se consegue despertar o doente que não tarda a cair num letargo invencível. Acontece a temperatura elevar-se apenas inicialmente e dissipar-se ao final de poucos dias; outras vezes torna-se severa e persistente, ou então irregular [1].
O estado mental perturba-se; vem a inconsciência. A narcolepsia de grau profundo priva o paciente de toda a reação motriz ou psíquica, chegando até à relaxação dos esfíncteres com incontinência urino-fecal. Observam-se tremores e reflexos superficiais e profundos. São comuns as paralisias, sobretudo as oculares. Observa-se a queda da pálpebra superior, podendo ocorrer desvios nos olhos. A musculatura interna do olho também padece. Apontam-se ainda casos de suores profundos e crises sudorais [1].
Os sintomas da Encefalite Letárgica, tal como descrevemos exaustivamente a partir da obra do Dr. Ricardo Jorge, são variáveis tanto em termos de presença, sucessão e intensidade, como ao nível da duração e eventual evolução. O doente pode viver dias, semanas ou até meses, com a possibilidade de escapar ou falecer. No seu relatório de 1918, Ricardo Jorge declara ainda que parece existir uma certa indiferenciação da doença face a géneros e faixas etárias, considerando, até à época, que não havia ainda qualquer tipo estudo que demonstrasse existir uma relação contagional, como por exemplo a repetição de casos na mesma família.
Um enquadramento histórico da Encefalite Letárgica, a partir das evidências teóricas que remontam ao século XVI e dos episódios epidemiológicos que decorreram entretanto
Vimos já que a Encefalite Letárgica foi nomeada e descrita nosologicamente em 1917 pelo neurologista von Economo, após ter rebentado em Viena uma epidemia do tipo neuropsiquiátrico. No entanto, encontramos na história, nomeadamente no século XVI, alguns escritos que evidenciam casos de infeções muito semelhantes aos que assistimos na Europa a partir de 1917, e que de resto serviram de base para a concetualização da doença a que aqui nos referimos. Tais evidências, observáveis sobretudo a partir das célebres centúrias do mestre Amato Lusitano, um notável médico português de religião judaica, e dos escritos de Gómez Pereira, médico e filósofo natural de Espanha, inspiram-nos a uma viagem histórica à procura de vestígios e indicadores que sustentem, mais do que uma relação de proximidade, uma demonstração clara de que a Encefalite Letárgica de hoje remonta à Idade Moderna, onde foram feitos diagnósticos sintomaticamente semelhantes, utilizando apenas designações diferentes.
Partindo precisamente da questão das designações atribuídas às infeções a que se assistiam no século XVI, percebemos rapidamente a confusão léxica e a falta de rigor que existia na altura. A partir do relatório de 1921 do Dr. Ricardo Jorge – A Encefalite Letargica e a Epidemiologia dos Quinhentos: em Portugal e Hespanha [1] –, observamos a imensidão de denominações que ao longo do tempo foram atribuídas ao excesso de sono por causa mórbida, tais como: Hypersomnía, Narcolepsia, Narcose, Hypnose, catáfora, cathoco, lethargos, coma, veternus, etc. Destes termos, sobreviveram apenas coma e letargo, este último com o significado de sono profundo e mórbido e vontade invencível de dormir. O mestre Amato ia lamentando a escassez do vocabulário bem como a capacidade de significação, dadas as necessidades descritivas que iam surgindo à medida que se tornava claro a variedade de estados soporosos na encefalite, associados a estados mentais tão distintos. No meio desta confusão, os italianos acabaram por lhe chamar mal de mazucho e os espanhóis mal de modorra ou modorrilha.
O médico Ricardo Jorge, motivado pelas mesmas evidências históricas a que nos referimos anteriormente, em particular um escrito de Amato Lusitano que relata o caso de uma família onde três pessoas partilharam na mesma altura os sintomas da doença, procurou, nomeadamente através de dois relatórios que já aqui citamos, fazer a ponte entre as descrições históricas do século XVII (relativamente à modorra, como lhe chamavam na península ibérica) e a Encefalite Letárgica denominada em 1917.
Desta forma, desenvolvemos uma Timeline com os antecedentes da Encefalite Letárgica que se instalou em França e Inglaterra na primavera de 1918, tentando expor, a partir de uma abordagem cronológica, o percurso histórico da doença neuropsiquiátrica que remonta ao século XVI.
Das evidências históricas que conseguimos encontrar, para justificar uma relação entre a Modorra e Encefalite Letárgica, que pelas similaridades sintomáticas aparentam ser praticamente a mesma doença, apenas com designações diferentes, revela-se interessante as duas observações de Amato Lusitano na Centúria II publicada em 1551: uma primeira que decorre em Ancona, com uma criada que revela febre constante juntamente com um sono tão profundo que “por mais que se fizesse, nem soltava pio, nem abria os olhos, se é que alguma coisa sentia”; e uma segunda observação, em que uma mulher e a sua filha, que viviam na casa onde trabalhava a criada, três dias após o seu falecimento, começaram a adoecer com febre e com uma vontade invencível de dormir [2].
Uma reflexão sobre as relações que poderão existir entre o vírus Influenza e a Encefalite Letárgica
Vimos já, recorrendo a vários contextos históricos, que a modorra ou a Encefalite Letárgica (termo contemporâneo) e os vírus influenza andaram muitas vezes lado a lado, coexistindo não raras vezes desde o século XVI. As evidências, não sendo inéditas, propõe uma certa relação entre a doença neuropsiquiátrica e a doença da gripe, ou pelo menos, estimulam uma reflexão sobre possíveis correlações que possam existir entre ambas. Foi mesmo já sugerido que a Encefalite Letárgica estava associada com a Gripe Espanhola de 1918. Embora os agentes causadores não tenham sido identificados objetivamente, as evidências circunstanciais determinam o vírus influenza como o culpado das epidemias de encefalite [3].
Perante a limitação bibliográfica a que estamos sujeitos, que aparenta não ter cientificidade e robustez suficiente para formular um veredicto final, resta-nos observar que os episódios epidemiológicos de Encefalite Letárgica ou Modorra, pela proximidade que estabelecem com as epidemias provocadas por vírus Influenza, muitas vez até acontecendo em paralelo com a doença da gripe, são suspeitos de uma correlação que potencia os seus estragos em termos de mortalidade e fatalidade. No caso particular da Gripe Espanhola, observamos já que o número de casos de doentes com encefalites parece ter aumentado precisamente no seu decurso, voltando mais tarde (1923-1927) em força, atingindo números extremamente expressivos.
Ainda assim, ficou claro, a partir das evidências históricas recolhidas, que será inevitável e fundamental uma reflexão médica em torno do pós-covid-19, procurando perceber e medir a possibilidade da ocorrência de efeitos tardios no sistema nervoso central. Não conseguindo levar o processo de identificação mais longe neste artigo, esperamos que os indicadores históricos partilhados incitem a uma investigação mais aprofundada sobre as relações entre os vírus Influenza e a Encefalite Letárgica, bem como um levantamento teórico de estudos e investigações, que poderão estar já a decorrer, com o objetivo de avaliar a possibilidade de virem a surgir efeitos tardios no contexto pós-covid-19.
Referências Bibliográficas
[1] Jorge, R. (1921). A Encefalite Letargica e a Epidemiologia dos Quinhentos: em Portugal e Hespanha. Instituto Nacional de Saúde do Dr. Ricardo Jorge – Biblioteca, 36. Obtido de http://www2.insa.pt/sites/INSA/Portugues/Biblioteca/BiblioDigit/Documents/insa-26-rj-26.pdf
[2] Jorge, R. (1918). Nota sobre uma nova infecção epidemica: Encefalia letargica ou Estupor Epidemico. Instituto Nacional de Saúde do Dr. Ricardo Jorge – Biblioteca , 24. Obtido de http://www2.insa.pt/sites/INSA/Portugues/Biblioteca/BiblioDigit/Documents/insa-82-rj-82.pdf
[3] Hayase, Y., & Tobita, K. (1997). Influenza virus and neurological diseases. Psychiatry and Clinical Neurosciences, 51, 181-184 .
[4] Uribe, C. S., González, A. L., & González, P. (2019). La encefalitis letárgica de von Economo y la pandemia de la gripe española en Bogotá y Medellín: reseña histórica cien años después. Biomédica, 39(8), 8-16. Obtido de https://doi.org/10.7705/biomedica.v39i1.4677