Cristiana Santos e Leonardo Lopes
Desde março de 2020 que a pandemia tem vindo a transformar a forma como vivemos, como comunicamos e como percecionamos a temporalidade da vida. Fazer circular a informação pela sociedade tornou-se ainda mais importante num contexto de incerteza, onde muitas das vezes as perguntas sobrepunham-se às respostas. Por este motivo, os jornalistas, paralelamente com os profissionais de saúde, foram também eles essenciais, combatendo as consequências do cenário pandémico na opinião pública, mas também a desinformação aliada ao fenómeno das redes sociais.
Tendo como ponto de partida o Jornalismo na Linha da Frente, quem melhor que a jornalista Paula Rebelo, especializada na área da saúde, para nos falar sobre os desafios jornalísticos provocados pela covid-19. A jornalista portuense iniciou o seu percurso na RTP, em 1997, onde se dedicou, numa primeira fase, às reportagens regionais e, mais tarde, ao jornalismo político. Foi nos intervalos da política que começou a fazer notícias do dia na área da saúde, fazendo com que iniciasse o seu caminho numa nova área de especialização. As conversas no terreno proporcionaram-lhe, como de resto menciona na entrevista, “um feliz casamento de circunstâncias”, construindo o início do seu percurso no jornalismo de saúde. Comprovando um matrimónio bem-sucedido, Paula Rebelo tem vindo a distinguir-se ao longo dos anos, tendo sido premiada pelo menos nove vezes desde 2012. Entre os prémios que ganhou, vale a pena destacar os mais recentes: prémio de jornalismo GSK Vacinas: A face visível da prevenção (2019); prémio de jornalismo João Cordeiro – Inovação em Farmácia (2019); e prémio de jornalismo na área do AVC – Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (2020).
Sabemos que nem sempre esteve ligada ao jornalismo de saúde, quando e como se deu essa transição para o jornalismo especializado?
Foi uma coisa muito natural, entrei para a RTP em 97, no ano em que acabei o curso de jornalismo (Licenciatura), e obviamente, como é normal quando se começa, começamos muito pelas reportagens regionais, depois, por uma questão de timing de circunstâncias, fui para o jornalismo político. E acho que foi passado 5 anos, nesses intervalos da política, que obviamente surgem nas reportagens da sociedade, que comecei a fazer umas notícias do dia, da atualidade de saúde. E gostei, correu bem, os médicos gostaram de mim, os administradores hospitalares, na altura, gostaram de mim, em particular um saudoso Sollari Allegro que era administrador do Hospital de Santo António. A partir dessas conversas no terreno começaram a surgir outras ideias para reportagem, que se marcavam logo passado 2/3 dias, e foi literalmente uma avalanche de situações felizes, de coincidências felizes. E depois acabou por ser natural, quando dei conta, passado um ano, já contava com mais reportagens de saúde do que em outra área qualquer, onde acabei por ir construindo a minha agenda de contatos até aos dias de hoje, mantendo ainda algumas dessas fontes mais antigas, que é uma coisa que muito me orgulho.
Quando passou da formação académica para o trabalho propriamente dito, ainda não havia essa ambição de se especializar na área da saúde?
Nem me passava pela cabeça, aliás, arrepiava-me quando via sangue. Isto é um cliché, mas é a mais pura realidade, se alguém me dissesse, quando saí da escola superior de jornalismo, que ia fazer jornalismo de saúde, fosse em que meio fosse – jornal, rádio, televisão –, pensava que era perfeitamente impossível, até pelas minhas caraterísticas à época. Mas depois foi uma coisa que foi surgindo naturalmente.
“Hoje estou num bloco operatório, como estou literalmente a conversar convosco, e não estou a exagerar. Já se tiver que ir tirar sangue, se calhar, já fico a tremer um bocadinho.”
Já após ter abraçado o jornalismo de saúde, sabemos que fez o Mestrado em Comunicação e Saúde. Até que ponto acha que a formação académica é uma necessidade ou um complemento ao jornalista especializado, seja na área da saúde ou noutra área de especialização?
Só posso falar por mim. Posso dizer que em 2007, quando soube da abertura do Mestrado em Comunicação e Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, não hesitei. Achei que realmente ao estar já há bastantes anos sustentadamente nesta área, precisava de outras ferramentas para me credibilizar no meio e para me enriquecer.
“A saúde é a área mais transversal que existe e nós estamos a ver isso precisamente com a pandemia – afeta a Economia, a Administração Interna, a Defesa, como vemos com esta participação dos militares, a segurança social, o Ambiente, etc.”
E a pandemia veio denunciar flagrantemente isto, que era a minha luta há já muitos anos. Portanto, com esta linguagem ou várias linguagens tão específicas, senti a necessidade de me munir de outras ferramentas. Então meti dois anos do estatuto de trabalhadora-estudante e saía da RTP todas as sextas-feiras para apanhar o Alfa, para às seis horas da tarde começar as aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa. E foi maravilhoso, tive professores espetaculares e pessoas de muita proa, por exemplo o ex-ministro da saúde, o Adalberto Campos Fernandes, foi meu professor de Saúde Pública; o professor Rui Torgal, que está agora na Direção-Geral de Saúde, foi meu professor; o Pedro Pita Barros foi meu professor de Economia em Saúde. Todos estes pontos foram fundamentais para que eu pudesse ganhar maior noção e maior domínio da área. Efetivamente senti-me mais confortável depois disso, acho que foi a melhor opção da minha carreira, sem dúvida.
O selecionar informação, isso é difícil não é, principalmente em tempos de pandemia e com a covid-19, foi difícil selecionar o que é que era importante, o que não era, o que era mais especulativo, o que era menos especulativo, o que era mais credível. Como é que foi essa gestão?
Por acaso confesso que não senti particular dificuldade nesse ponto, por uma simples razão: porque poucos conseguia concretizar.
“Foi a primeira vez na minha carreira e na carreira da maior parte dos meus colegas, em que tínhamos os especialistas a assumirem mais vezes o não sei.”
E tudo isso também é uma novidade, isso é que exige uma grande adaptação – porque tens que fazer uma reportagem e tens que dar informação às pessoas. Se as tuas fontes não têm informação para te dar, nós ficamos numa espécie de deserto. E agora? E como é que fazemos? Acho que foi a primeira vez em que punha pessoas a dizer em direto que a notícia era não sei. Era tudo em tempo real, todos nós a fazer as perguntas e as perguntas eram muito mais coincidentes do que as respostas, efetivamente. A resposta que me lembro de ser mais consensual foi o não sei. Mas o que é certo, é que dei por mim a ter uma reflexão muito interessante, e a ter que passar às pessoas uma certa aceitação e tolerância para compreender que o que nós dizemos hoje é a verdade que se conhece, amanhã a verdade que se conhece pode ser mentira. E isto não é fácil para um jornalista, porque um jornalista também se dá uma verdade hoje, quer que seja verdade amanhã. Portanto, isto exigiu uma adaptação de todos.
Considera que na comunicação do jornalista de saúde há um risco maior pelo facto de que, se calha de dizer uma frase menos conseguida jornalisticamente ou com informação imprecisa, isso poderá, por vezes, manchar aquilo que é o seu percurso mais facilmente do que noutras áreas de especialização?
Claro, sem dúvida. Aliás, assistimos a isso ainda hoje quando vão buscar excertos da Graça Freitas, por exemplo, a diretora da Direção Geral de Saúde, quando disse – “O vírus? Não, isso é na China, está muito longe, se calhar não chega” –, ou quando foi questionada sobre as visitas aos Lares, que eram obviamente um local de muita fragilidade, a Graça Freitas disse – “Não, nem pensar, eu até deixo aqui um apelo para as pessoas visitarem ainda mais os idosos nos Lares”. Portanto, lá está, isto mancha. E ao longo desta pandemia, houve muitas situações constrangedoras a esse nível, porque as pessoas acima de tudo e, neste caso, estou a falar assumidamente dos políticos, que não souberam gerir as expectativas, nem souberam gerir a própria informação, ao saberem que a informação era tão rápida, tão volátil, estas pessoas de responsabilidade – sejam políticos, sejam as autoridades de saúde –, deviam ter tido um maior cuidado na eficácia dessa informação, para garantir a eficiência a médio-longo prazo. Porque, efetivamente, não chega estar a dizer as coisas taxativamente, quando as respostas são tão imprecisas e tão incertas. Tem a ver com saber gerir a comunicação em gestão de crise. E aqui sim, as reputações caem, com uma frase, às vezes com uma palavra abusiva, uma palavra mais otimista, uma palavra que não se adeque.
Como é que um jornalista, tal como um profissional de saúde e tal como as restantes pessoas, vivendo a mesma guerra e também receando o mesmo medo da pandemia, de ser infetado, encara a importância de sair à rua e fazer chegar a informação às pessoas, sabendo que isso é extremamente necessário e não há mais ninguém a fazer esse trabalho?
Acho que na tua pergunta está toda a resposta. Nunca imaginei sequer outra alternativa, foi uma coisa perfeitamente natural. Se havia contexto em que tinha de fazer o meu trabalho, era este. Se antes da pandemia já assim o encarava, com a pandemia então, não tive a mais pequena dúvida.
Mas acha que isso pode funcionar a favor dos jornalistas no sentido em que se calhar a sociedade, após a pandemia, vai valorizar mais o seu trabalho?
Não sei se vai valorizar mais os jornalistas, isso até nos leva à história das redes sociais, que podemos falar mais à frente.
“O que eu acho, genuinamente, é que as pessoas vão valorizar mais as áreas da saúde, e vão valorizar mais os serviços da saúde e os profissionais de saúde.”
Isso tenho a certeza. Se há coisa que acho que posso tirar do meu trabalho e do trabalho dos meus colegas, e da comunicação social em geral no tempo da pandemia, foi a valorização da saúde e todos os seus ramos, as dificuldades e o poder de adaptação de todas as estruturas da saúde, os desafios que ainda temos pela frente. Em relação a nós, jornalistas, estamos sempre sujeitos à crítica. E cada vez mais, com a proliferação das redes sociais.
Pegando precisamente na questão das redes sociais, não só com os jornalistas, mas também com todas as pessoas mais expostas socialmente, acabam por ser um meio de crítica. São os tais treinadores de bancada?
Que proliferam de uma maneira extraordinária! Mas, ao longo deste ano, levantou questões muito pertinentes relacionadas com a pandemia, aliás, se remontarmos à história, já tínhamos visto isso no movimento antivacinas. Neste contexto da pandemia, começamos também a ter negacionistas na própria classe dos profissionais de saúde, dentro da própria classe médica. Isto é muito complicado de gerir! Até para eles, aliás, como vimos pela ordem dos médicos. E é muito difícil de desmontar, porque para todos os efeitos, a população que nos ouve pensa sempre – “são médicos e, por isso, sabem do que falam”.
“E o desconstruir tudo isto é difícil, porque também nestas alturas o discurso demagógico e populista é muito atrativo. É muito mais atrativo do que a informação.”
E isto também foi outro dos maiores desafios que tivemos e continuamos a ter, e que vai aumentar no futuro – é um desafio que eu acho que vai ser contínuo.
Considerando que a saúde é uma área que interessa a toda a gente ou pelo menos a um grande número de pessoas, como se soluciona o desafio de adequar a mensagem a pessoas com diferentes níveis de literacia e conhecimento na área?
Passa por tentar ter um tema interessante e que possa interessar ao maior número possível de pessoas. Depois, tornar essa mensagem clara e atrativa, nomeadamente com um caso particular, em que alguém se possa rever, e isto não é tornar a mensagem simplista, mas simplificar a mensagem. Através da imagem, da clareza de depoimentos e nomeadamente dos especialistas e dos casos que escolhemos para transmitir a sua experiência pessoal, tratando-se de casos interessantes, o segredo é um bocadinho esse. Socorremo-nos também de grafismos, porque o jornalista gosta muito de números – números de incidência, números de prevalência, custos – e isso ajuda sempre a fazer com que a mensagem seja facilmente apreendida. São sobretudo estas ferramentas, a partir das quais também nos vamos socorrendo, para além dos sons das pessoas, dos objetos, dos próprios locais.
E como dizia há pouco, se calhar também a relação de empatia entre o jornalista e o público é fundamental nesse sentido, não é?
E empatia com as pessoas que estão a dar os seus depoimentos, tentar criar essa empatia com quem está, no fundo, a expor-se. Também temos de ter sempre essa humildade e esse respeito, sejam doentes, sejam familiares de doentes, sejam profissionais de saúde, por mais especializados que sejam. Desde o médico, ao cientista, ao auxiliar, ao técnico de diagnóstico, ao enfermeiro, à senhora da limpeza, todos se estão a expor e nós temos de ter um grande respeito por isso.
“Porque é muito fácil criticar, não é fácil estarmos a expor-nos publicamente e temos que respeitar, acima de tudo, a dor da pessoa, a fragilidade da pessoa que estamos a expor, independentemente da patologia que tem, tendo sempre cuidado com os estigmas que possam existir.”
Voltando á comunicação científica, no dia 11 de março foi criada uma task force para ajudar o governo e quem comunica, para que as pessoas entendam melhor. O que é que acha disso? Acha que esta comunicação científica faz sentido?
Essa comunicação científica faz todo o sentido. Só não percebo como é que ela surge mais de um ano depois da pandemia e como é que ela nem sequer existia mesmo se não tivéssemos pandemia. Isso, para mim, é uma condição sine qua non. Eu sinto falta disso pelo menos há 20 anos e nos últimos anos, acho que é ainda mais constrangedor, face a toda a evolução que temos tido.
“E até a gestão de crise, que é extremamente importante, e gerir as expectativas é meio caminho andado para não termos problemas comunicacionais e não termos metade das chatices e das polémicas.”
Insistindo nesta questão, assistimos, neste último ano, à emergência de novos especialistas e cientistas no espaço público, criando-se novos protagonistas na área da saúde. De que forma considera relevante e fundamental esta cooperação da comunidade científica com o espaço mediático? E se isso deverá permanecer depois da pandemia.
Acho que é uma das coisas boas da pandemia, é esta ligação e esta naturalidade mediática que os próprios cientistas perceberam e a sua validade para a credibilização da informação. Porque é muito fácil de se acusar os jornalistas de dizerem asneiras, principalmente em assuntos tão técnicos. O jornalista precisa de um especialista para o conduzir, para o orientar, para explicar. Isso é uma coisa que se vai tirar daqui para o futuro, com muitos bons resultados, disso não tenho dúvidas. Outra coisa também muito importante é que estas pessoas que têm este conhecimento e experiência, estejam mais disponíveis para o partilhar e nem sempre isso acontece. Eu acho que acabamos por despertar mais essa consciência, para a importância de quando solicitados responderem ao nosso apelo, que faz toda a diferença, como é óbvio. Até para contrariar as fake news e os pseudoespecialistas, que também surgiram como cogumelos.
Com esta explosão de informação que temos recentemente vindo a assistir, agora com a pandemia, mais na área da saúde, e também com a consolidação das redes sociais na vida quotidiana das pessoas, de que forma é que isso aumenta o risco da infodemia e das notícias falsas, e como é que um jornalista de saúde lida com essa situação?
Eu lido com muito mau feitio, mas sendo altamente profissional, enquanto jornalista, tento contrariar aquilo que posso com a informação que tenho. No ponto de vista pessoal, é não alimentar, não propagar, não dar mais eco. Houve uma altura em que tudo isso me incomodava e acho que, às vezes, quanto mais tentamos dar importância e responder é pior.
“Nós só podemos contrariar a má informação com boa informação. Porque tudo o resto escapa-nos ao controle. Nós temos de dar às pessoas alternativas credíveis, sérias e interessantes, para que possam complementar ou, neste caso, contrapor e fazerem as suas escolhas.”
Às vezes contrariar pode ter o efeito inverso, porque podemos ter o fenómeno dos mártires ou até da mordaça, portanto não vale a pena. A nossa única arma é contrariar, com a informação mais rigorosa e séria possível.
“Não temos alternativa, é desmontar o populismo, a demagogia, as fake news, a má informação, e dar a informação que conseguimos com os dados que temos.”
Há pouco falávamos da prevalência da cooperação da comunidade científica com o espaço mediático. Acredita que, para além disso, a pandemia poderá ter acelerado um conjunto de mudanças positivas no jornalismo de saúde?
Não só da comunidade científica, mas também das autoridades de saúde deste país e das instituições que são fundamentais neste processo. Por exemplo, o Instituto Nacional Ricardo Jorge e o próprio INFARMED são exemplos de estruturas fundamentais. Os próprios hospitais, a nível geral neste país, abriram as suas portas para mostrarem o que estavam a fazer bem, as suas debilidades. Tudo isto vai mudar seguramente o panorama da saúde neste país, na relação com a comunicação social. A nível do jornalismo também, vai obrigar a uma reflexão, e isto a seguir às grandes crises acontece sempre, e é muito positivo. Eu acho que vai deixar muitos mais colegas a procurarem saber mais sobre a área, a serem mais exigentes com o conhecimento e as ferramentas que eles próprios têm sobre a área e vai também aumentar o nível de exigência em relação à informação que nos é dada.