• Sobre a Coleção Guimarães

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A minha coleção, a minha vida.
A minha biblioteca

Uma biblioteca é um conjunto de livros e manuscritos irmanados pela alma do bibliófilo que os colecionou. A minha, é o espelho do que sou, do que me conheço, do que ainda me desconheço e do que ainda me conhecerei. Sem ela sobrevivia, mas não saberia viver. Entrego-me de corpo e alma na esperança de a (me) compreender. O tempo que lhe dedico não é um tempo de trabalho, nem de ócio, é um tempo de meditação, um demorar-me no silêncio dos livros…

A minha principal tarefa como bibliófilo é cuidar deste conjunto de livros e manuscritos, refugiados do tempo e/ou da insanidade inquisitória que frequentemente nos visita. Assegurar que me sobrevivam. Essa é a principal tarefa. Assegurar que me sobrevivam.

Há na minha biblioteca “frágeis tesouros” com necessidade de proteção. Quero dar-lhes a atenção que exigem. Quero que sobrevivam à consumição do tempo em nome das gerações de cuidadores que, ad infinitum, me sucederão. O amor também é cuidado. O bibliófilo para além de cuidador é um amante. Um amante dos livros, do significado da linguagem escrita, um amante fraterno da humanidade. Um humanista.

A minha biblioteca constrói-se em volta das duas grandes paixões da minha vida. A História, como instrumento de racionalizar a interpretação que faço do mundo, e a Poesia, interpretação do ser humano, esse misterioso animal que tem o condão de pensar, amar e odiar. A Filosofia é o fio que cose as páginas dispersas da minha biblioteca. Se tivesse que lhe dar um nome, chamar-lhe-ia LIBERDADE.

“Segundo Walter Benjamin, o que caracteriza o verdadeiro colecionador é uma estupefacção perante as coisas, ou seja, essa capacidade de inspiração que precede a posse: “Assim que (o colecionador) tem (as coisas) nas suas mãos, parece inspirado por elas, parece olhar através delas na direção da sua distância, como se fosse um mago”” (1).

No meu caso pessoal essa estupefacção perante as coisas vai muito para além da inspiração que elas me causam, e que é real. Assume foros de espanto metafísico pois transcende a physis que está à mercê da minha caducidade.

Numa época alérgica ao silêncio, em que a comunicação se confunde com o ruído, amplificado pela digitalização, pela desmaterialização… Onde caberá o táctil? O material? Na voragem da virtualidade não eliminaremos a realidade? A minha biblioteca é, para mim, a realidade recuperada (2). De cada vez que toco num dos pergaminhos, alguns com quase setecentos anos, sou infinito na finitude do momento. De cada vez que saboreio entre os dedos os primeiros documentos que herdei do meu avô sinto na pele a sua mão, o seu cheiro, a sua paixão, a sua Presença, e somos de novo, dois imortais a saborear a brevidade do tempo…

Apesar de viajar muitas vezes pelo passado, que é o tempo da minha biblioteca, sou um homem do presente que procura nela, e para ela, o futuro. Entendo que a minha coleção é merecedora de todos os cuidados que lhe possa oferecer. Por isso não hesitei em aceitar este projecto da Universidade do Porto, Alma Mater da minha formação profissional apaixonada. Abrir a minha colecção à digitalização enquanto ferramenta de trabalho da Academia foi o desafio.

Agora, que o projecto começa a ver a luz do dia, sinto-me um privilegiado por ter tido a oportunidade de cuidar tão bem da minha coleção. Estou certo de que ela é, agora, mais completa, tem mais sentido como um todo. A desmaterialização que a tornou acessível ao estudo da “Academia”, onde quer que ela esteja, quem quer que ela seja, permitirá que despontem flores de conhecimento que outrora lhe estavam vedadas.

Impõe-se um agradecimento especial à equipa do CITCEM da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que tornou este trabalho possível.

Termino exortando outros bibliófilos cuidadores a aceitarem o mesmo desafio. Pelo menos a pensarem nisso.
“Pensar é agradecer. A filosofia não é outra coisa que não o amor do belo e do bom” (3).

Junho de 2021,
Um Bibliófilo anónimo do século XX

(1) In HAN, Byung-Chul Han – Louvor da Terra. Lisboa: Relógio d’Água, 2020, p. 70.
(2) Inspirado em Byung-Chul Han: “A digitalização aumenta o ruído da comunicação. Não só acaba com o silêncio, mas também com o táctil, com o material… Em última análise, a digitalização elimina a própria realidade. … O meu jardim é, para mim, a realidade recuperada” (in HAN, Byung-Chul Han – Louvor da Terra, p. 113).
(3) In HAN, Byung-Chul Han – Louvor da Terra, p. 99.